segunda-feira, 25 de maio de 2009

Sarapalha



Leitura final do conto: “Sarapalha” de João Guimarães Rosa, feita no programa radiofônico ALACAZUM PALAVRAS PARA ENTRETER que foi ao ar no dia 24 de maio de 2009, transmissão pela Rádio Clube de Valença 650 Khz AM.


- Espera, primo, elas estão passando... Vão umas atrás das outras... Cada qual mais bonita... Mas eu não quero, nenhuma! Quero só ela.... Luisa...
-Prima Luiza....
-Espera um pouco, deixa ver se eu vejo.... Me ajuda, Primo! Me ajuda a ver....
- Não é nada, Primo Ribeiro.... Deixa disso!
-Não é mesmo não...
-Pois então?!
- Conta o resto da estória!
- ... “Então, a moça, que não sabia que o moço-bonito era o capeta, ajuntou suas roupinhas melhores numa trouxa, e foi com ele na canoa, descendo o rio...”
- A moça que eu estou vendo agora é uma só, Primo... Olha!.... É bonita, muito bonita. É a sezão. Mas não quero... Bem que o doutor, quando pegou a febre e estava variando, disse... você lembra? .... disse que a maleita era uma mulher de muita lindeza que morava de-noite nesses brejos, e na hora da gente tremer era quem vinha... e ninguém não via que era ela quem estava mesmo beijando a gente... Mas, acaba de contar a estória Primo...
-É tão triste...
-Não faz mal, conta!
- .... “Então, quando os dois estavam fugindo na canoa, o moço-bonito, que era o capeta, pegou a viola, tirou uma toada e começou a cantar:



- “Eu vou rodando
rio-abaixo, Sinhá...
Eu vou rodando
Rio-abaixo, Sinhá”


- E ai?...
- O senhor está cansado de saber... “Aí a canoinha sumiu na volta do rio... E ninguém não pôde saber p’ra onde foi que eles foram, nem se a moça, quando viu que o moço-bonito era o diabo, se ela pegou a chorar... ou se morreu de medo... ou fez o sinal-da-cruz... ou se abraçou com ele assim mesmo, porque já tinha criado amor.... E, cá de riba, o povo escutou a voz dele, lá longe, muito longe....”

-Canta como foi Primo...
-É a mesma cantiga...
-Mas canta!


- “Eu vou rodando
rio-abaixo, Sinhá...
Eu vou rodando
Rio-abaixo, Sinhá”


-Aí, Primo Argemiro, está passando... Já estou meio melhor... Será que eu variei? Falei alguma bobagem?
-Falou, não, Primo... D’aqui a pouco é a minha vez... Não dilata p’ra chegar....
Sim, d’aqui a pouco vai ser a sua hora. Aqui a febre serve de relógio. Ele já está ficnado mais amolecido. Também deve ser de ter pensado muito. Antes o outro não tivesse querido falar em nome guardado... Foi dar outra força à saudade... E ele, que nem tem com quem desabafar, não tem a quem contar o seu sofrimento!... Lá, onde está o cruzeiro, morreu um trabalhador de roça, um velho. Foi de repente, do coração... Será que a gente ainda tem de viver muito?!
-Primo Argemiro?!
-Que é, Primo Ribeiro?
-Estou com uma sede... Estou me queimando por dentro... Me faz a caridade de dar um eco na preta...
- A negra não escuta... Eu vou buscar a água, Primo Ribeiro.
-Deus lhe pague Primo.
Primo Ribeiro respira a custo. Está remexendo com os dedos e falando sozinho outra vez.
Lá vem o outro com a caneca. Desce a escadinha, muito devagar. É magro, magríssimo. Chega trôpedo, bambo meio curvante.
-Ai Primo Argemiro, nem sei o que seria de mim, se não fosse o seu adjutório! Nem um irmão, nem um filho não podia ser tão bom... não podia ser tão caridoso p’ra mim!
-Bobagem Primo. Aproveita e toma o remédio também, tudo junto de uma vez.
-Não quero, já falei! Quero mas é ajudar este corpo a se acabar...
...(- ‘Nem um irmão, nem um filho”....) ele está mas é enganado o companheiro! Há quantos anos que esconde aquilo... Não! É hoje! Não está direito... Tem de confessar...
- Primo Ribeiro... eu nunca tive coragem p’ra lhe contar uma coisa... Vou lhe contar uma coisa... O senhor me perdoa?!
-Chega aqui mais p’ra perto e fala mais alto, Primo, que essa zoeira nos ouvidos quase que não deixa a gente escutar...
-Não foi culpa minha... Foi um castigo de Deus, por causa de meus pecados... O senhor me perdoa, não perdoa?
-Que foi isso Primo? Fala de uma vez!
-Eu... eu também gostei dela, Primo.... Mas respeitei sempre.... respeitei o senhor.... sua casa.... Nós somos parentes.... Espera, Primo! Não foi minha culpa, foi má-sorte minha...
Primo Ribeiro arregalou os olhos. Calcou a mão na madeira do cocho. Faz força para se levantar.
-Não teve nada, Primo! ... Juro!.... Por essa luz!.... Nem ela nunca ficou sabendo.... Por alma de minha mãe!
As pernas de Primo Ribeiro se recusam a agüentar-le o corpo. Primo Argemiro se levantou também. Quer ajudar o outro a se suster.
-Me larga! Me larga e fala como homem!
-Já falei, Primo. Me perdoa...
-Você veio morar aqui com a gente, foi por causa dela, foi?...
-Foi primo. Mas nunca...
- E foi por isso que você não quis ir-s’embora...depois?... Esperando para ver se algum dia ela voltava, foi?
-Não primo... isso não!... Não foi nada por causa... Eu também sofri muito... Não queria mais nada no mundo... E foi por conta do senhor também... Quando ela deixou de estar aqui, eu fiquei querendo um bem enorme ao senhor... a esta cada de fazenda... aos trens todos daqui.... Até a maleita!
-Fui picado de cobra... Fui picado de cobra..... Ô mundo!
-Mas sossega Primo Ribeiro... Já lhe jurei que não faltei nunca ao respeito a ela... Nem eu não era capaz de cair num pecado desses.
-Fui picado de cobra...
- O senhor está variando.... Escuta! Me escuta, pelo amor de Deus...
- Não estou variando, não, mas em-antes estivesse! Some daqui, homem! Vai p’ras suas terras... Vai p’ra bem longe de mim! Mas vai logo de uma vez!
-Quero morrer nesta hora, se algum dia eu pensei em fazer a sua desonra, Primo!
-Anda, por caridade! Vai embora!
-Pensa até mais logo, Primo... até hoje de-tarde...
-Este caco de fazenda ainda bem que é meu... É meu!... Anda! Anda!... Não quero ver você mais...
-Me dá um prazo, Primo. Até o senhor melhorar.
-Vai!
-Estou pagando o que não fiz!
-Vai!
- O senhor ainda pode precisar de mim, Primo, que sou o único amigo que o senhor tem.
-Então, vai Primo!... Você não tem pena de mim, que não tenho arma nenhuma aqui comigo, e, nem que tivesse, não rejo mais nem força p’ra lhe matar?!
E primo Ribeiro, branco, encaveirado, soprando, e levantando o queixo a cada ofego, caiu sentado no casco do cocho outra vez.
- Pois então adeus, Primo! Me perdoa e não guarda ódio de mim, que eu lhe quero muito bem..
- Ajunta suas coisas e vai...
-Não tenho nada.... Não careço mais de nada... O que é meu vai aqui comigo... Adeus!
Primo Argemiro reúne suas forças. E anda. Transpõe o curral, por entre os pés de milho. Os passopretos, ao verem um espantalho caminhando, debandam, bulhentos. O perdigueiro de focinho grosso vem correndo também. Vem, mas diz que não vem: vira a cabeça, olha para Primo Ribeiro, que lá está sentado ainda, curvado para o chão. O cachorro está desatinado. Pára. Vai, volta, olha, desolha... Não entende. Mas sabe que está acontecendo alguma coisa. Latindo, choramingando, chorando, quase uivando. Por que tem ordem de ser sempre fiel, e não sabe mais, não se recorda mais qual dos dois homens será o seu dono verdadeiro.
Quando o outro passou a tranqueira, Primo Ribeiro levantou a cabeça, e espiou. Sua, sua: assim corpo e roupa; e a testa que é só um escorrer. Fecha os olhos, parecendo que nem pode morrer direito.
Mas Primo Argemiro anda sem se volta. Agora atravessa o matinho.
- I-v-v-v-v.... O primeiro calafrio... A maleita já chegou...
O cachorro ainda pulou-lhe adiante, ganindo, pedindo... Depois, parou. Não quer ir mais longe.
-Adeus Jiló!
Fica. Ninguém não mandou que ele fosse embora... Ele pode ficar...
Outro grande arrepio. Que frio!.... E, no entanto, as árvores estão agora sem sombra, e o sol, se caísse, se espetaria no estipe verde do coqueiro.
A erva-mãe-boa derrama cachos floridos, no meio das folhas em corações. Muitas flores. Azuis... Foi num vestido azul que ele a viu pela segunda vez, no terço de São Sebastião... Tantos anos! Quando a verá ainda? No céu, talvez... Mas, ele Argemiro, terá de respeitar Primo Ribeiro, que é o marido em nome de Deus..
... Mas, quando a viu, acompanhando o terço, já gostava dela, já lhe tinha amor... Desde de-manhã... na porta da casa, saindo para a missa, ela com a mãe e as irmãs... Já estava de casamento tratado com Primo Ribeiro... Talvez que ela não fosse a moça mais bonita do arraial... E não era mesmo. Mas o amor é assim...
Nunca mais? Nunca mais... Ai, meu Deus! Por mim era muito melhor não ter céu nenhum...
...Por aquele tempo, Argemiro dos Anjos era um moço bem-aparecido, de figura, e com oitenta alquires de terras de cultura,afora algum dinheiro de parte...
Ai! Que o frio cai entre os ombros, e vai pelas costas, e escorre das costas para o corpo todo, como fios de água fria. Zoa nos ouvidos confuso sussuro, e para diante dos olhos vêm coisinhas, querendo dançar.
Ir, para onde?
.... A primeira vez que Argemiro dos Anjos viu Luisinha, foi numa manhã de dia-de-festa-de-santo, quando o arraial se adornava com arcos de bambu e bandeirolas, e povo se espalhava contente, calçado e no trinque, vestido cada um com a sua roupa melhor...
Ir para onde?... Não importa, para a frente é que a gente vai! Mas, depois. Agora é sentar nas folhas secas, e agüentar. O começo do acesso é bom, é gostoso: é a única coisa boa que a vida ainda tem. Pára, para tremer. E para pensar. Também.
Estremecem, amarelas, as flores da aroeira. Há um frêmito nos caules rosados da erva-de-sapo. A erva-de-anúm crispa as folhas, longas, como folhas de mangueira. Trepidam, sacudindo as usa estrelinhas alaranjadas, os ramos da vassourinha. Tirita a mamona, de folhas peludas, como o corselete de um cassununga, brilhando em verde-azul. A pitangueira se abala, do jarrete à garimpa. E o açoita-cavalos derruba frutinhas fendilhadas, entrando em convulsões.
-Mas meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito p’ra gente deitar no chão e se acabar.
É o mato, todo enfeitado, tremendo também, com a sezão.

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