quinta-feira, 21 de maio de 2009

Futebol de veteranos

Texto lido na 128° edição do programa radiofônico ALACAZUM PALAVRAS PARA ENTRETER que foi ao ar no dia 17 de maio de 2009, transmissão pela Rádio Clube de Valença 650 Khz AM.

O espetáculo começa quando eles chegam, aí por volta de duas e meia das tardes de sábado. O campo tem pouco menos de 50 metros de comprimento, cabendo seis de cada lado, um louco no gol, dois zagueiros, dois na frente e um armando pelo meio. Olhos luzindo, eles calçam os sapatos de tênis ou basquete. Três ou quatro senhores, sempre suspeitos, confabulam a um canto, escalando, conforme a freqüência, três ou quatro times para o torneio vesperal.


- O meu está um droga.


- O seu, perto do meu, é um escrete.


- E o meu!Nelson e Mauricinho juntos! Essa não!


- O meu está mais ou menos, mas só tem jogador de defesa!


Logo depois do par-ou-ímpar é preciso recondicionar os times. Todos estão descontentes ou fingem descontentamento, até que um deles se abraça com a bola e, gesticulando com o outro braço, brada:


-Vamos começar, gente! Anda escurecendo cedo.


Todos resmungam, mas acabam concordando, e há uma aparência de calma. Antes que se dê a saída, são indispensáveis mais duas brigas: a primeira, dentro de cada time, pois ninguém quer começar no gol; a segunda, envolvendo todos, é sobre o juiz.


- Se o Zé Catimba apitar, eu não jogo.


- Por quê?


-Porque ele tem cisma comigo.


- O Lúcio não veio hoje?


- Está em casa tocando trombone.


- Apita você, Armandinho.


- Nem por vinte mil cruzeiros.


- E você Tavares?


- Só apito se ninguém reclamar.


-Promento que do meu lado ninguém reclama.

Eu nunca reclamo mesmo.


Prometem, mas não cumprem. Todos reclamam de tudo e de todos, do juiz que não viu mão, do adversário que cometeu obstrução, você que me trancou pelas costas, do companheiro que não passou, essa nem o Garrincha tenta fazer, do goleiro que papou um frango.


-Você não viu que eu não consegui matar a bola?


-Vi: você está sem revólver.


As partidas se sucedem, a gana de vencer é feroz, o suor escorre, os corações disparam, há cruentos suspiros de fadiga, as mãos esfregam os rins quando a bola vai fora, as botinadas vão e vêm, recíprocas. Mas não esmorecem, é preciso não esmorecer, pois ninguém mais é criança.


Mas aqui somos todos umas crianças, crianças de 30 e poucos, de 30 e muitos, de 40, os dois mais velhos aí pelos 50. Crianças numa pelada crepuscular, que pode ser a última de nossa vida, o cemitério, a orfandade de nossos filhos. Mas é por isso mesmo que não podemos perder, é por isso mesmo que fazemos das tripas coração, é atrás duma nesga da infância que andamos a correr, é a maturidade irremediável que estamos tentando driblar, é contra o tempo que perseguimos o gol.

Visto de fora, sobretudo por uma pessoa que já arqueja ao correr para pegar o ônibus, nosso espetáculo pode ser triste e ridículo. De dentro, dou minha palavra de honra, trata-se duma vivência bonita e alegre. Um viciado em leituras psicanalíticas diria que estamos querendo provar a nós mesmos que... ainda não ficaremos velhos. E diria a verdade. Ignorando no entanto que , de antemão, já nos sabemos derrotados; aí reside uma rejubilação de músculos e espírito, uma poesia que vai tangenciar a própria dramaticidade do tempo e a incapacidade humana de revertê-lo.


Mais tarde, tomando uma cerveja, os cavalões estão vermelhos por fora e purificados por dentro. Pudicamente, um dirá que a pelada ajuda a manter a forma; outro alega que deseja perder um pouco de peso; outro cinicamente acha que não há nada como esse exercício para fazer boca para uma cervejinha estupidamente gelada.


Mas no fundo, em segredo, sabem todos que a pelada é boa porque dar um chute bonito faz um bem extraordinário à alma do homem. Sobretudo se o homem é brasileiro.



Paulo Mendes Campos

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